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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A fórmula da bossa nova

revista VIDA SIMPLES

Grandes Temas

A fórmula da bossa nova
Os quatro elementos de uma música leve porque eterna, delicada porque alegre
por Leandro Sarmatz | ilustrações Nelson Provazi


Você provavelmente não lembra até porque, assim como eu, nem tinha nascido ainda , mas a música brasileira já foi um gênero dramático, sim, um derivado de operetas e bel-canto, em que cantores se esganiçavam em dós de peito para falar de amores trágicos, mulheres cruéis, desenlaces dramáticos e romances malogrados. E sempre tinha alguém morrendo envenenado. Nem todo mundo pegava assim tão hard, claro.


Ainda nas décadas de 30 e 40, compositores como Noel Rosa e Dorival Caymmi, cantores como Orlando Silva (um vozeirão suave que escandia as sílabas com elegância) e Mario Reis (um tiquinho de voz com uma atitude moderna) e cantoras como Carmen Miranda e Aracy de Almeida tinham um quê todo especial. Esses compositores e intérpretes populares trouxeram leveza, delicadeza, uma atitude mais solar à música brasileira. E ajudaram a abrir caminho para toda uma geração de artistas a partir do fim dos anos 50.

Pois então: em agosto de 1958, há 50 anos, um baiano de Juazeiro lançava um disquinho de 78 rpm com as músicas Chega de Saudade (lado A) e Bim Bom (lado B). Nunca mais seríamos os mesmos. João Gilberto foi o abre-alas, o porta-estandarte de um momento (e não apenas movimento) que em breve seria conhecido como bossa nova e que hoje forma um tesouro, não apenas da música popular, mas da nossa sensibilidade. Porque a bossa nova é uma música que, mais que uma promessa de felicidade, sintetiza toda uma atitude diante da vida.


Leia esta canção.

Leveza
Foi João Gilberto, que pelos 50 anos seguintes cultivaria o folclore (ao que parece, confirmado por muitas fontes fidedignas e outras nem tanto) de arredio, quem narrou o episódio exemplar, quase uma fábula sobre seu primeiro contato com Tom Jobim: Meu encontro com Tom foi no Leme, cedo ainda da noite. Era perto da boate Drink e eu estava naquele café Mooca, cheio de músico. Aí tem o descanso e eles iam naquele bar nessa hora. Tom estava ali, sentado, e se levantou. Menino se conhece assim. Menino chega e começa a conversar. É bom e assim logo vai se conhecendo.

Bonito, não? Claro que é preciso levar em conta que o Rio dos anos 50 mal havia povoado o Leblon (a Barra ainda era uma ficção, um imenso areal), a vida parecia ser mais risonha e franca para alguns etc., mas o depoimento de João Gilberto dá conta de uma atitude que está na raiz da música praticada por ele e por Tom Jobim, além de João Donato, Johnny Alf, Marcos Valle, Vinicius de Moraes, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli e tantos outros artistas de qualidade. A questão básica é a leveza. Leveza nos acordes: já ouviu o piano de Tom Jobim? Ele fica só no essencial, sem firulas. Leveza nas letras: não mais aquele vocabulário pernóstico, beletrista, mas palavras do cotidiano de uma juventude culta e solar como era a turma do Rio que cresceu no pós-guerra.

Tudo bem que versos como Tu pisavas nos astros distraída (Chão de Estrelas, Orestes Barbosa, anos 30) estão entre os imortais do nosso cancioneiro, mas compare essa atitude a do macho diante de sua fêmea com o verso Você tem que vir comigo em meu caminho (Minha Namorada, Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, anos 60). Se na primeira o foco é, digamos, negativo (o amante rememora o amor com melancolia), na letra dos bossanovistas a atitude é afirmativa, olha para a frente, para o futuro da relação. Sem mágoas. Na maior leveza. E de forma compartilhada.

Delicadeza
Há poesia mais leve e delicada como essa na hora de falar de um amor que não aconteceu direito? Veja isto:

Ah!, se eu pudesse te encontrar serena / Eu juro, pegaria tua mão pequena / E juntos vendo o mar / Dizendo aquilo tudo, quase sem falar.
A composição é de Bôscoli e Menescal, dois dos artífi - ces do movimento. Em vários depoimentos da turma que integrou as primeiras fileiras da bossa nova transparece um corte, abrupto até, com os ideais e a visão de mundo de pais e parentes mais velhos.

Acontece que a bossa nova, junto com outros movimentos em outras partes do mundo ela é contemporânea dos primórdios daquela mistura de ritmos negros que desaguaria no rock e da nova forma, mais solta, de se fazer cinema dos jovens cineastas franceses da nouvelle vague , foi a primeira grande manifestação de cultura jovem no Brasil. Não é exagero. Isso estava acontecendo em todo o mundo. As crianças que cresceram durante a Segunda Guerra enxergavam um novo horizonte à frente, longe das privações, dos tempos sombrios, dos gestos heróicos e das despedidas para sempre.

Ao romper com o dramalhão e o bolero, com o melodrama das paixões, ao ir para a beira da praia (em vez de se enfurnar em buracos do velho Centro) e ao se recusar a cair na fossa como a geração de seus pais, os moços da bossa nova buscavam na estética aquilo que já viviam no cotidiano: uma maneira mais delicada de tocar a vida, em que os amores não precisavam ser eternos, as amizades ajudavam a fermentar ainda mais a turma, a vida merecia ser celebrada a cada momento, sem desespero nem afobação.

Chico Buarque, que de certa forma é filho da bossa, pois foi escutando Chega de Saudade que ele decidiu ser artista popular, sem falar que iria ser parceiro de Tom e Vinicius (e por um período cunhado de João Gilberto!), tem uma parceria com Cristóvão Bastos intitulada Todo Sentimento. Na letra, a certa altura ele fala num tempo da delicadeza, algo que só pode ser compreendido a partir de quem se nutriu das canções bossanovistas.

Alegria
Ele era o rei da melodia. Antes do Tom, contavam-se nos dedos as músicas que transmitiam certa ternura. Era tudo muito trágico. Foi o outro João essencial da bossa nova quem disse isso: João Donato, ele próprio um mestre do ritmo e das harmonias, infelizmente bem mais apreciado durante décadas nos Estados Unidos, no Japão e na Europa que em sua terra natal. A ternura absolutamente antitrágica a que se refere Donato tem a ver com um espírito de alegria que as canções da bossa nova projetaram para o futuro desde aqueles primeiros tempos.

Claro que, em matéria de alegria desmesurada, de deboche genial, de graça malandra não há quem ganhe do samba de Noel Rosa, Lamartine Babo, Martinho da Vila e Zeca Pagodinho, só para citar alguns bambambãs de várias gerações. Aí são outros quinhentos, evidentemente.

Sem falar que, sem a lição do samba, neca de bossa nova. Mas ela cristalizou (sim, fixou para sempre) a alegria não só nas letras e melodias, mas no próprio ambiente em que os músicos passaram a circular. Não mais as enfumaçadas e darks boates de outrora. Se você pegar um livro como Chega de Saudade, de Ruy Castro, a mais exaustiva e deliciosa investigação sobre o movimento, você vai ver que as canções passaram a ser compostas em reuniões nos apartamentos da turma, às vezes na praia, outras vezes no boteco, em plena luz do dia. E é claro que isso influencia o modo de composição, nem é preciso ter estudado sociologia da cultura para sacar um troço desses.

Veja esta letra de Tom e Vincius, A Felicidade:

A felicidade é como a gota / De orvalho numa pétala de flor / Brilha tranqüila / Depois de leve oscila / E cai como uma lágrima de amor.


Dá para perceber a sutileza do raciocínio? O que os poetas dizem aqui é que dá para alternar momentos felizes com outros nem tanto, o que vale é essa alegria tranqüila, sábia. Na poética popular o orvalho sempre esteve associado à melancolia, era como uma lágrima da natureza que correspondia perfeitamente àquelas despejadas pelo pranto do poeta. A bossa nova fez isso, alterou os pólos da nossa sensibilidade, mostrando que, se não há total felicidade, pode-se encontrar a alegria. Até porque

Tristeza não tem fim / Felicidade sim.

Eternidade
Vamos repassar algumas coisas que estiveram em nossa conversa. A bossa nova, inicialmente surgida como um movimento musical no Rio de Janeiro amável da década de 50, e que ganharia o mundo quase como sinônimo de música brasileira, sintetizou e lançou ao futuro alguns dados da nossa sensibilidade, como a leveza, a delicadeza e a alegria. Mesmo que depois vários de seus precursores tenha negado o rótulo e com alguma razão, afinal a música que fizeram João e Jobim, entre outros, é apenas música maravilhosa, sem carimbos de procedência , ter sido bossanovista foi um marco na carreira desses músicos e continua sendo uma espécie de distinção especial. Afinal, os valores desse movimento até hoje marcam nossa música e de certa forma nossa maneira de enxergar as coisas, poeticamente falando.

Escutar qualquer CD de João Gilberto (ou assisti-lo em uma de suas raras apresentações previstas para os meses de agosto e setembro em São Paulo, Rio e Salvador) é deparar com um outro tempo, que não é apenas ontem e hoje, mas sempre. Alguma coisa na sua maneira de cantar, na sua forma de tocar o violão, de escolher o repertório cada vez mais os sambas das décadas de 30 e 40 que ele costumava ouvir em sua infância e mocidade parece dizer, até para o mais desatento dos ouvintes, que aquilo ali foi feito agorinha mesmo, que não depende dos últimos recursos técnicos da temporada, e que por detrás de sua aparente simplicidade há uma busca constante pelo essencial. Isso é o que garante a eternidade de um artista. E de qualquer empreitada na vida.

Ainda duvida? Pois então creia em Tom Jobim e veja o que ele escreveu na contracapa do primeiro LP de João Gilberto, Chega de Saudade (1959): Ele acredita que há sempre lugar para uma coisa nova, diferente e pura que embora à primeira vista não pareça pode se tornar como dizem na linguagem especializada: altamente comercial. Porque o povo compreende o amor, as notas, a simplicidade e a sinceridade. Eu acredito em João Gilberto, porque ele é simples, sincero e extraordinariamente musical.

http://vidasimples.abril.com.br/edicoes/067/grandes_temas/conteudo_279384.shtml

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