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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

'A prevenção precisa avançar além da camisinha'

Saúde - 01/12/2010 - 07:31 - revistsa VEJA

Entrevista
'A prevenção precisa avançar além da camisinha'
Infectologista fala da luta contra o HIV no Dia Mundial de Combate à Aids

Há sete anos à frente da Casa da Aids, serviço de extensão ao atendimento de pacientes com HIV/AIDS, ligado ao Hospital das Clínicas da USP, e há 16 lutando contra a doença no Brasil, a infectologista Eliana Gutierrez pode atestar que os portadores de HIV no país vivem cada vez mais, com acesso facilitado a medicamentos e maior inserção na sociedade. A geração que nasceu com o vírus está chegando aos 25 anos, e a maioria trabalha, tem escolaridade avançada, amigos e relacionamentos amorosos.

Arquivo Pessoal
Eliana Gutierrez, diretora da Casa da Aids
Em entrevista ao site de VEJA neste Dia Mundial de Combate à Aids, a especialista diz que uma das prioridades deve ser difundir outros métodos de prevenção - além das camisinhas - e incentivar mais a realização de exames para identificar a contaminação pelo HIV (calcula-se que metade dos doentes não sabe que tem o vírus).

Como vivem os portadores de HIV no Brasil hoje?
Segundo um levantamento que fizemos recentemente em São Paulo, com 3.200 soropositivos em tratamento pelo SUS, eles estão inseridos na sociedade. Os pacientes pesquisados têm uma escolaridade elevada – mais de 60% tem 11 ou mais anos de educação formal. De todos eles, 75% estão ativos no mercado e só 9,3% estão desempregados. Sua renda familiar média está acima de 2.000 reais. E, surpreendentemente, 83% deles dizem ter apoio social, de familiares ou amigos. E eles não têm escondido mais o diagnóstico: 92% alega ter contado para alguém.

Atualmente, qual a expectativa de vida para quem nasceu com o HIV no país?
Não é mais possível determinar exatamente. Hoje, ela é uma expectativa alta. Temos aqui pacientes que nasceram com transmissão vertical (da mãe para o filho) e têm 25 anos.

Um recente estudo da ONU (confira gráfico abaixo) atribuiu ao Brasil a nota 0,8 (numa escala de zero a um) na prioridade de investimentos para o combate à aids. Para um país de terceiro mundo, é uma nota alta. Como o país conseguiu atingir esse índice?
Em primeiro lugar, com o SUS. Ele é bastante adequado para o atendimento das necessidades dos soropositivos. O programa de aids se estruturou muito bem dentro desse sistema. Além disso, temos a questão do diagnóstico. Embora a taxa de pessoas que não sabem que estão contaminadas pelo HIV ainda seja alta – e talvez esse seja o ponto fraco do sistema brasileiro – há um esforço para que aumente o número de pessoas que fazem o teste, com exames rápidos e gratuitos. Depois, vem o tratamento, e essa eu acho que é a questão mais bem sucedida de nosso programa.

Por quê?
Existe uma lei específica para disponibilização de medicamentos retrovirais, que os pacientes com HIV e aids precisam. Desde que apareceram os medicamentos retrovirais altamente potentes, o acesso a esses remédios é universal. Foi desenvolvida ainda uma rede de ambulatórios especializados para esses pacientes e uma rede de suporte laboratorial. Demos atenção a casos muito específicos, como a transmissão vertical. Hoje, é oferecido um teste de HIV a toda gestante logo no início da gravidez, seja no sistema público ou no privado. Assim, caso ela seja soropositiva, podemos introduzir a medicação durante a gestação, suspender a amamentação e tratar a criança após o parto. Isso teve o poder de reduzir transmissões desse tipo de quase 30% a menos de 1%. O resultado de todas essas políticas públicas, que começaram na década de 90, se traduziram em bons indicadores.

Segundo esse mesmo relatório da ONU, o número de novos casos no Brasil é muito menor do que a média da América do Sul e Central. Ao mesmo tempo, somos responsáveis por um terço dos soropositivos da América Latina. Como esses índices se explicam?
A nossa taxa de novas infecções diminuiu, mas a nossa taxa de mortalidade caiu muito mais - e responde pelo aumento no total de soropositivos.

Há diferenças na qualidade de vida dos soropositivos tratados em convênios médicos e daqueles tratados pelo SUS?
Eu creio que não, porque o medicamento, tanto para um caso quanto para o outro, é o mesmo. As normas de tratamento aos quais ambos devem obedecer são divulgadas e atualizadas periodicamente pelo Ministério da Saúde.

Qual o porcentual de brasileiros soropositivos que não sabe que tem o vírus?
Até algum tempo atrás, calculava-se que pouco mais da metade das pessoas que têm HIV não sabiam disso. Dos que vêm à Casa da Aids fazer o teste, 16% são soropositivos e não sabiam. Mas esse número deve estar diminuindo, porque a taxa de pessoas fazendo o teste no Brasil está aumentando. Isso acontece porque, se não há uma motivação extra, como sinais clínicos, muitas pessoas não se testam. E o HIV pode permanecer assintomático por vários anos após o contágio. O indivíduo se infecta hoje e pode ter um quadro – que parece gripal – daqui a umas três semanas. Quando ele se recupera, pode ficar sem sintoma algum por cinco, sete anos. O esforço geral hoje é incentivar as pessoas a fazer o teste antes que esses sinais apareçam. Porque quando os sintomas clínicos surgem, a doença já está muito avançada. E aí todos os benefícios do programa se perdem.

Qual a reação geral dos pacientes quando sabem que são soropositivos?
É muito ruim. Por mais que se diga que a doença, hoje, pode ser tratada e é possível levar uma vida com qualidade, as pessoas sabem que terão que enfrentar muito preconceito. Se por um lado o tratamento é bom, por outro a discriminação ainda é alta. Muitos ficam deprimidos e tem o firme propósito de esconder de todo mundo a doença. E, com uma depressão elevada, há a chance de suicídio.

Qual o próximo passo no combate à doença no país?
Uma conquista interessante seria aumentar a taxa dos que fazem o teste para 90% ou 95% da população sexualmente ativa, uma taxa semelhante a dos países do norte da Europa. Assim, as pessoas que tem HIV, mesmo que não estejam em tratamento, ficam sob acompanhamento e não transmitem a doença. Como médica, também gostaria de ter mais alternativas de prevenção a oferecer, além da camisinha. Métodos mais “customizados”, como existem para a contraconcepção, estimulariam a prevenção. Por exemplo, hoje, entre os nossos pacientes que têm relações estáveis, 65% se relacionam com pessoas soronegativas. O que propomos para eles? Preservativo. Seria interessante ter outros instrumentos para essas situações.


Tags: aids, casa da aids, hospital das clínicas, prevenção, religiao, saúde, sus.
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http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI190412-15215,00-O+PAPA+JUSTIFICOU+O+USO+DE+CAMISINHA.html

revista ÉPOCA

O papa “justificou” o uso de camisinha?


Em artigo, padre jesuíta explica a base da argumentação de Bento XVI sobre o preservativo

AMIZADE
Joseph Fessio, autor deste artigo, e Bento XVI são amigos


O papa “justificou” o uso de camisinha em algumas circunstâncias? Não. E também não houve absolutamente nenhuma mudança nos ensinamentos da Igreja. Não apenas porque uma entrevista com o papa não constitui um ensinamento, mas também porque nada do que ele disse difere dos ensinamentos que já existiam.

Então, por que todas as manchetes estão dizendo que ele “aprova” ou “permite” ou “justifica” o uso de camisinha em certos casos?

Essa é uma boa questão. Tão boa que o próprio entrevistador fez praticamente a mesma pergunta durante a entrevista.

O papa fez uma declaração na entrevista, uma declaração que agora tem sido citada pela mídia mundial. Imediatamente, o entrevistador, Peter Seewald [jornalista alemão que já escreveu quatro livros sobre Joseph Ratzinger e conduziu as entrevistas de Luz do Mundo], colocou a questão: “O senhor está dizendo, então, que a Igreja Católica não é, na verdade, contrária, em princípio, ao uso da camisinha?”

O papa esclareceu e expandiu sua declaração anterior.

Vamos olhar para as duas declarações.

Depois de dizer que “não podemos resolver o problema [a aids] distribuindo camisinhas...” e que “a fixação exclusiva na camisinha implica uma banalização da sexualidade...” o papa diz: “Pode haver uma base no caso de alguns indivíduos, como talvez quando um garoto de programa usa uma camisinha, em que pode ser o primeiro passo rumo à moralização, uma primeira aceitação de responsabilidade no caminho à recuperação da compreensão de que nem tudo é permitido e de que ninguém pode fazer tudo o que quer. Mas, realmente, não é a maneira de lidar com o mal da infecção por HIV. Isso pode depende apenas de uma humanização da sexualidade.”

É uma declaração com muitos adjetivos, muito tímida. Ainda assim, suscitou a pergunta de Seewald citada acima. Mas vamos primeiro olhar mais de perto essa declaração. O original alemão para “Pode haver uma base no caso de alguns indivíduos...” é “Es mag begründete Einzelfälle geben...”. A versão em inglês é uma tradução acurada. “Begründete” vem de “Grund”= “solo”, e significa tanto o chão em que pisamos quanto a fundamentação lógica. Há uma ambiguidade porque pode ter o fraco sentido de “alguma base para” ou o forte senso de “fundamentação lógica e ética para”. Essa talvez tenha sido a razão por que Seewald fez uma pergunta adicional, a que voltaremos mais adiante.

É importante notar que houve dois erros muito graves na versão em italiano das declarações do papa, em que muitos dos primeiros artigos se basearam, assim que o embargo foi quebrado pelo jornal do Vaticano, L’Osservatore Romano. (Essa é uma outra história.) O primeiro, o vocábulo alemão “ein Prostituierter”, que só pode se referir aos garotos de programa. A palavra comum em alemão para se referir a uma prostituta é “[eine] Prostituierte”, que é feminina e se refere apenas a mulheres. A tradução italiana “uma prostituta” simplesmente é o contrário do que o Papa diz.

Igualmente problemática, “giustificati”= “justificável”, foi usada na tradução italiana de “begründete”, e arbitrariamente resolve de maneira tendenciosa a ambiguidade.

O papa respondeu: “Ela [a Igreja] não considera a camisinha como uma solução moral ou real, mas, neste ou naquele caso, pode ocorrer no entanto com a intenção de reduzir o risco de infecção, o primeiro passo em um movimento em direção a um novo caminho, um caminho mais humano de viver a sexualidade”.

Em primeiro lugar, uma solução que não é “moral” não pode ser “justificada”. Há uma contradição e isso significaria que algo intrinsecamente mal poderia ser “justificado” para atingir um fim bom. Note: o conceito de “mal menor” é inaplicável aqui. Alguém pode tolerar um “mal menor”; ninguém pode fazer algo que é um mal menor.

Mas a distinção crucial aqui é entre a “intenção” do garoto de programa, evitar infectar o seu cliente, e o ato em si, usar a camisinha. Como a distinção se perdeu em quase todas as reportagens que li, pede-se uma elaboração.

A distinção, em filosofia moral, é entre o objeto de um ato e a intenção de um ato. Se um homem rouba para fornicar, a intenção é copular, mas o objeto é o ato de roubar. Não há uma relação necessária entre roubar e fornicar.

No caso da declaração do papa, a intenção é prevenir a infecção e o objeto é o uso da camisinha.

Aqui está um exemplo dessa distinção que é paralelo ao que o papa afirmou. Ladrões estão usando canos de aço para atacar as pessoas e as lesões são sérias. Alguns ladrões usam canos revestidos por espuma para reduzir as lesões, o suficiente para incapacitar a pessoa e cometer o roubo. O papa diz que a intenção de reduzir os danos (no ato de roubar) pode ser um primeiro passo para uma maior responsabilidade moral. Isso não justifica as seguintes manchetes: “Papa aprova canos revestidos com espuma para roubo”; “Papa diz que o uso de canos revestidos é justificado em algumas ocasiões”; “Papa permite o uso de canos revestidos em alguns casos”.

Claro, alguém pode usar moralmente em algumas circunstâncias, por exemplo, para isolar canos para que a água quente que por eles passa não esfrie tão rápido. E alguém pode usar moralmente a camisinha em alguns casos, por exemplo, fazer balões de água. Mas isso não justifica a manchete “Papa aprova o uso de camisinha”, embora neste caso possa ser verdadeiro. Mas seria intencionalmente enganoso.

Em resumo, o papa não “justificou” o uso de camisinha em qualquer situação. Os ensinamentos da Igreja continuam os mesmos que sempre foram – antes e depois das declarações do Papa.

*Joseph Fessio é editor da Ignatius. editora que lançou Luz do mundo em inglês. O padre jesuíta foi doutorando de Joseph Ratzinger na década de 1970

http://veja.abril.com.br/noticia/saude/a-prevencao-precisa-avancar-alem-da-camisinha-diz-diretora-da-casa-da-aids

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