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domingo, 6 de março de 2011

A premonição sob a luz da ciência

Comportamento

| N° Edição: 2156 | 04.Mar.11 - 12:00 | Atualizado em 04.Mar.11 - 12:50


A premonição sob a luz da ciência


Publicado na edição 2156

Estudo feito por um renomado psicólogo da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, reacende o debate sobre a capacidade humana de antever o futuro
Débora Rubin


OUSADIA
Um dos melhores pesquisadores de sua geração, o psicólogo Daryl J.
Bem transgrediu as regras da academia ao estudar sobre premonição


Num diálogo do livro “Alice no Outro Lado do Espelho”, de Lewis Carroll, a continuação do clássico “Alice no País das Maravilhas”, a Rainha Branca diz à Alice que tem memória nos dois sentidos, para o passado e para o futuro. Tese que a menina considera um absurdo: “Ninguém pode acreditar em coisas impossíveis”, rebate. A soberana, no entanto, explica que é somente uma questão de prática e a aconselha a imaginar ao menos seis coisas impossíveis antes mesmo do café da manhã. Menos cético que a carismática personagem, o renomado professor americano Daryl J. Bem, um dos mais proeminentes pesquisadores de psicologia de sua geração, segundo o “The New York Times”, ousou deixar de lado a regra silenciosa que paira sobre o ambiente acadêmico, segundo a qual tudo o que foge de uma explicação racional deve ser solenemente ignorado. E desobedeceu a esse hermetismo em grande estilo, ao investigar a capacidade humana de antever o futuro, popularmente conhecida como premonição. Tal qual a Rainha Branca, ele crê na memória com a seta indicando para a frente.


ESTUDO
O procurador aposentado Valter Borges montou um
instituto de pesquisa após a premonição da morte do filho

O mais recente estudo de Bem, publicado no “Journal of Personality and Social Psychology”, da Associação Americana de Psicologia, teve um efeito explosivo sobre a comunidade internacional. Menos por seu conteúdo, também bastante surpreendente, e mais pelas credenciais de seu autor, um notório professor de psicologia da Universidade de Cornell, Nova York, uma das mais prestigiosas dos Estados Unidos. Ele tem mais de 70 artigos publicados e é formado em física pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT). Até então, os trabalhos sobre as chamadas percepções extrassensoriais, também conhecidas como ESP (sigla em inglês para extrasensory perception) eram considerados menores, pouco científicos. O de Bem e sua equipe quebraram essa escrita. Em sua pesquisa, Daryl J. Bem relata nove experimentos feitos com mais de mil universitários. Os testes, reproduções de estudos clássicos sobre percepção extrassensorial, eram extremamente simples.Neles, os participantes tinham que antever que tipo de imagem iria aparecer no computador ou em qual das duas janelas mostradas na tela iria surgir uma foto. Quando o conteúdo em questão tinha um teor erótico, os estudantes acertavam mais. “Isso entre pessoas comuns, escolhidas de forma aleatória. Meu palpite é de que se eu usar gente mais talentosa, melhor nisso, elas poderão prever qualquer foto”, disse o pesquisador, sem explicar o que quer dizer, ao certo, “gente mais talentosa”.


CHOQUE
A funcionária pública Erilene Pereira anteviu dois acidentes de carro, com o filho e o cunhado

Segundo Bem, em oito dos nove experimentos houve um índice de acerto acima do que é considerado coincidência ou obra do acaso. Também foi feito um teste no qual o aluno escolhia se queria arriscar mais nas respostas ou se desistia de tentar. “Os que aceitaram correr mais riscos foram os que tiveram mais acertos”, conta Bem. O psicólogo é cuidadoso ao tirar suas conclusões, mas acredita que todo mundo pode ter capacidades precognitivas, embora uns as tenham mais desenvolvidas do que outros. Também explica que as percepções extrassensoriais são fruto do processo evolutivo no qual antever situações de perigo ou propícias à reprodução se tornaram vantajosas ferramentas de sobrevivência. Isso ajudaria a comprovar a existência de premonições.

Outra pesquisa, feita com universitários brasileiros, mostra que pensamentos premonitórios rondam o inconsciente bem mais do que se imagina. Segundo o trabalho realizado em 2008 na Universidade de São Paulo, 71,5% relataram premonição através de sonhos. No Instituto do Sono, de São Paulo, 30% dos pacientes contam ter sonhado com algo que depois se concretizou. Apesar de ser comum e fazer parte da vida de muitos brasileiros, essa capacidade de antever o futuro ainda é encarada como um grande mistério. Poucos cientistas se dispõem a estudar o tema e, mais do que isso, se recusam a comentá-lo. Lá fora, não é diferente. O artigo produzido em Cornell foi recepcionado com duras críticas. Ray Hyman, professor de psicologia da Universidade de Oregon (EUA), disse ao jornal “The New York Times” que o trabalho é loucura pura. “É um embaraço para a categoria”, atacou. Uma das censuras recebidas foi pelo fato de o professor Bem ter avisado os estudantes de que se tratava de um teste de premonição, o que pode ter influenciado as respostas. O físico Rory Coker, da Universidade do Texas (EUA), um crítico contumaz do que chama “pseudociência”, também fez ressalvas ao colega pesquisador. “A ciência não ignora os fenômenos paranormais, o problema é que tudo o que se vê são estudos feitos para provar aquilo no que se acredita. Dificilmente há resultados significativos e poucos trabalhos são reproduzíveis”, disse à ISTOÉ.

Daryl Bem não é o único acadêmico a colocar a mão nesse vespeiro ao longo da história. Em 1934, o professor Joseph Banks Rhine lançou a primeira edição do livro “Percepção Extrassensorial” a partir de vários testes realizados na Universidade de Duke (EUA). Foi ele quem cunhou o termo “parapsicologia” como o nome da ciência que estuda tais fenômenos. Mais recentemente, em 2001, outro professor de psicologia e neurologia da Universidade do Arizona (EUA), Gary Schwartz, testou em laboratório cinco médiuns, entre eles o mais famoso da tevê americana, John Edwards. No experimento, que foi exibido no Brasil pelo canal pago History Channel, Edwards ficava separado de pessoas que queriam saber sobre seus entes falecidos. Eles não se viam, apenas se ouviam e, como no programa, Edwards apenas confirmava as informações. O índice de acertos, segundo o pesquisador, foi de 83%. Schwartz também já esteve na mira do implacável professor Hyman, de Oregon, que o acusou de forjar resultados. “Muitas vezes na história da ciência nós estávamos errados. Quando achamos que a terra era plana, quando consideramos que o sol girava em torno da terra e tantas outras vezes. Prefiro estar sempre aberto a qualquer possibilidade”, defende-se o professor do Arizona.

Para confirmar as teses dos estudiosos no tema, dezenas de relatos de premonições vêm a público diariamente, manifestados por pessoas comuns – que trabalham, estudam, têm filhos, professam uma religião ou não. Elas costumam ser atropeladas em seu inconsciente por um acontecimento, uma certeza, quase um clarão, que se impõe sobre sua lucidez e se materializa em realidade horas, dias, meses depois, deixando-as, normalmente, assustadas. Roteiro cumprido pela arquiteta Silvia Arruda, de São Paulo. Em fevereiro de 1986, ela sonhou com uma cena de quebradeira no Brasil. Gente falindo, perdendo dinheiro, corrida aos bancos e supermercados. No dia seguinte, o então ministro da Fazenda, Dílson Funaro, anunciou o Plano Cruzado, que congelou o valor de salários, bens e serviços e provocou uma das maiores crises do governo de José Sarney (1985-1990). Vinte anos depois, um novo sonho premonitório, menos, digamos assim, coletivo. A arquiteta viu o então namorado com uma dançarina ruiva de cabelos cacheados. Contou para ele como quem relata uma curiosidade e foi ridicularizada. Pouco tempo depois descobriu que ele estava saindo com uma mulher tal e qual a do sonho. Detalhe: Silvia não é mística e nem sequer acredita em premonição. Ou, ao menos, não acreditava. “Não acho que seja algo sobrenatural, mas sim uma capacidade da mente em captar pensamentos e sensações não ditos”, afirma.


VISÃO
A gerente de marketing Carolina Oliveira enxergou a separação de um
casal desconhecido, que aconteceu três meses depois

Colocar a mediunidade no mesmo pacote das experiências extrassensoriais é assunto delicado. “A parapsicologia não lida com questões transcendentais, como a comunicação entre vivos e mortos, mas sim com a aptidão humana de manifestar poderes incomuns nas relações consigo mesmo, com os outros e com o mundo material”, define o procurador de Justiça aposentado Valter da Rosa Borges, de Pernambuco. Nos anos 70, ele criou o Instituto Pernambucano de Pesquisas Psicobiofísicas (IPPP) para tentar entender esses poderes incomuns, motivado por uma premonição que tivera anos antes. Em 1968, ele perdeu o filho Ulisses, de apenas 4 anos, vítima de um edema pulmonar agudo. “No dia em que ele faleceu, ao sair do apartamento onde eu morava, passei por uma alucinação auditiva. Uma voz me disse, por duas vezes, que meu filho ia morrer naquela tarde”, recorda.

“Não é um fenômeno religioso, não é loucura, paranoia, coincidência nem algo sobrenatural”, argumenta a parapsicóloga Márcia Cobêro, professora do Centro Latino-Americano de Parapsicologia (Clap). “É uma faculdade natural que todos têm, mas poucos se dão conta.” Segundo Márcia, a primeira reação das pessoas que têm premonições é achar que possuem um dom. O segundo passo é temer esse dom. Quando começou a ter premonições, o corretor de imóveis de Santo André (SP) Robson Leiva Lazarini ficou assustado e procurou ajuda na religião – primeiro católica, depois batista. Também criou o blog Sonhos Premonitórios (www.premonitoriosonho.blogspot.com), no ano passado. “As pessoas me mandam e-mails para tirar dúvidas. Não sou especialista, mas tento ajudar contando minha experiência.” Uma das que mais o impressionaram foi com um avião que tentava levantar voo no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, não conseguia, virava para a esquerda e batia num prédio baixo. No dia seguinte, foi buscar um cliente no aeroporto e ficou com muito medo que acontecesse algo com o jatinho dele. Quando o cliente aterrissou, respirou aliviado. Minutos depois, o avião da TAM, voo 3054, colidiu com o prédio da própria empresa após tentar arremeter num dia chuvoso. Lazarini ficou arrasado. “Mas o que eu posso fazer com esses sonhos? Ligar para a Anac e avisar? Não sei o que fazer com eles, então resolvi pelo menos registrar os mais recentes no blog.”


REDE
O corretor Robson Lazarini conta suas premonições,como a de um acidente de avião, em um blog

A paulistana Carolina Oliveira, 33 anos, gerente de marketing , também foi buscar ajuda para lidar com os eventos estranhos que rondavam sua vida. Há dois anos, ela passou a se sentir parte de um roteiro de filme do além. Luzes que acendiam logo após ela ter apagado, barulhos estranhos e fortes intuições do que estava para acontecer – a tal premonição. Quando morava na Itália, uma amiga apresentou um casal e ela, na mesma hora, sem nenhuma informação, viu os dois se separando em pouco tempo. A amiga negou e disse que eles se davam muito bem. Três meses depois, aconteceu o rompimento. “No começo eu tinha muito medo”, recorda Carolina. “Por isso procurei o espiritismo.” Hoje, ela atribui todos os acontecimentos aos espíritos que a guiam e ajudam no dia a dia. E garante que a vida ficou melhor ao saber lidar com esses episódios.


REAL
A arquiteta Silvia Arruda anteviu a traição do namorado e o advento do Plano Cruzado

“Não existe, até hoje, um estudo que comprove como isso acontece biologicamente. É metafísico e não sabemos como se dá. Mas é inegável que é importante como um processo de autoconhecimento”, destaca o neurologista Luciano Ribeiro, do Instituto do Sono, de São Paulo. Foi essa preocupação que levou a psicóloga Fátima Regina Machado a fazer sua tese de doutorado “Experiências Anômalas na Vida Cotidiana”, defendida na Universidade de São Paulo (USP) em 2010. Segundo ela, o objetivo era justamente chamar a atenção da comunidade acadêmica e dos profissionais da saúde para a importância das percepções extrassensoriais. “Compreendê-las é auxiliar o ser humano a lidar com elas”, destaca. Afinal, argumenta a psicóloga, mesmo sendo um tema marginalizado pela academia, são eventos que “insistem em acontecer” desde que o mundo é mundo.

Na vida da funcionária pública alagoana Maria Erilene Pereira, premonições e fortes intuições insistem em acontecer há algum tempo. Como quando, relaxando em uma rede, ela teve um insight com o filho mais velho, que havia saído com o carro à noite pela primeira vez. Erilene teve uma visão de um sinal próximo de sua casa. Sentiu um aperto no peito e ficou com receio de que acontecesse algo quando o filho passasse por ali. Ligou para ele e pediu que voltasse para casa. O jovem tentou acalmá-la, dizendo que estava tudo bem. Horas depois, ligou, aflito: havia batido o carro naquele local. “Tivemos sorte, só o veículo sofreu danos sérios. Ele ficou bem”, relembra. Muito pior foi o sonho no qual um de seus cunhados recolhia pedaços de um corpo após um acidente de carro. Dois meses depois ela perdeu um outro cunhado numa batida. E aquele do sonho, que recolhia os pedaços, foi o primeiro a chegar ao local do acidente. Os eventos ajudaram Erilene a cuidar de sua espiritualidade e se sintonizar mais com sua intuição. “Isso me ajuda a me conhecer melhor.”

Rory Coker, o físico americano que se dedica a denunciar os malefícios da pseudociência, acredita que tudo não passa de probabilidades. “Se toda vez que um parente meu sofresse algo eu sentisse, aí sim seria um fenômeno a ser examinado. Mas isso acontece muito de vez em quando e, portanto, fica dentro das estatísticas”, diz. No entanto, ele admira a coragem de pesquisadores como Daryl Bem. “É saudável que existam cientistas rebeldes que estão sempre imaginando como trilhar novos caminhos, por mais ­absurdos que eles soem aos nossos ouvidos.” Não à toa, Bem termina seu trabalho citando o diálogo da Rainha Branca e de Alice que abrem esta reportagem. O professor diz que 34% dos psicólogos que estão nas universidades concordam com Alice. E finaliza: “Quem sabe esse estudo não incentive os outros 66% dos meus colegas a investigar ao menos uma coisa anormal por dia.” Afinal, premonições são como as bruxas. Você pode até não acreditar nelas, mas que elas existem, ah, existem.

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