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segunda-feira, 22 de março de 2010

Turma do Gambá se reúne para cantar e brindar a vida







Com instrumentos bem afinados e muita inspiração, eles têm encontro marcado há mais de duas décadas. Uma das peculiaridades é que só tocam música popular brasileira. Axé, funk ou rock, nem pensar

Com um nome que alude ao marsupial famoso tanto por exalar mau cheiro quanto, neste caso, pela fama de ser bem chegado a uns goles, um curioso grupo de amigos se reúne todas as semanas no Setor de Clubes Sul

Leilane Menezes

Publicação: 22/03/2010 08:28 Atualização: 22/03/2010 08:41




A quarta-feira é o melhor dia da semana, há 22 anos, para 15 amigos que se reúnem sempre no meio da semana para celebrar a alegria de viver bem. Eles formaram uma banda entre antigos colegas de trabalho e batizaram o grupo como a Turma do Gambá. Durante todo esse tempo, vêm trocando felicidades e tristezas enquanto executam em violões, cavaquinhos, pandeiros e violinos pérolas da música popular brasileira, sempre depois do expediente. Tudo começou como uma brincadeira. Os funcionários do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), empresa pública vinculada ao Ministério da Fazenda, haviam sido transferidos para o Distrito Federal, no fim dos anos 1970, e decidiram transportar com eles o clima de boemia da Lapa, um dos bairros mais festivos do Rio de Janeiro, para o cerrado.

O clima é de descontração e piadas. Quem chega logo ganha um apelido. Assim como os petiscos, a cerveja gelada, com ou sem álcool — a depender da recomendação médica — não podem faltar. Atualmente, vários agregados, entre familiares e conhecidos, fazem parte do grupo. O mais novo tem 24 anos — começou a tocar com 10 — e o mais vivido, 80. A única mulher, atualmente, é Cinthia Pereira, 55 anos. “Sou a menina dos olhos de todos”, orgulha-se. Eles nunca cobraram para tocar: alimentam os dotes artísticos como passatempo e terapia para viverem mais felizes.

As apresentações começaram no Serpro e mudaram de lugar diversas vezes. A peregrinação recebeu o nome de Gambás sem Teto. Há três anos, os músicos adotaram como lar artístico o Clube da Associação Médica de Brasília, cedido pelo diretor. Lá, apresentam-se sempre às quartas-feiras, a partir das 19h, de graça. Toda plateia é bem-vinda, desde que não faça algazarra. “Aqui não é barzinho de música ao vivo, nem show. A gente aprecia a música. Não usamos microfone nem caixa de som. A conversa tem que ser baixinha”, ensinou um dos criadores da banda, Valdir Carnaval, o homem que tem a vocação para os festejos registrada na certidão de nascimento há 60 anos.







Regras
Quando alguém faz barulho demais, os gambás recitam uma poesia. Usam o texto há tanto tempo que se esqueceram da autoria: “Neste canto a mensagem é o canto. Canta, pois, se tal te convém. Se não cantas, silêncio, em respeito a quem canta ou a quem ouve encantado o canto de alguém”. Quem costumava declamar os versos era Antonio Jorge, falecido há três anos, quando tinha 55, e lembrado com saudades a todo momento.

Se a Turma do Gambá reina no salão, a quarta-feira fica com cara de sábado. O repertório é composto por músicas de Noel Rosa, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Cartola, entre muitos outros ídolos. E também por canções próprias, como o Hino do botequim. A letra da música explica bem o porquê da criação da banda. “A gente costumava se reunir artistas às sextas-feiras para fazer shows na Associação dos Servidores. Um amigo, então, sugeriu que em outro dia a gente mesmo tocasse um violão e tomasse uma cerveja para relaxar. Assim nasceu a turma”, relatou um dos fundadores, Waldemiro Schneider, 69 anos. Há duas versões para o nome inusitado. “A oficial é que na hora de escolher como chamar o grupo passou um gambá e ele ficou sendo o mascote”, informa Valdir, passando à segunda parte: “A não oficial é que o gambá está relacionado a quem bebe um bocado”.

O ditador
Como toda banda, a Turma do Gambá tem um líder. Waldemiro é quem toma a frente da maioria dos projetos. Há 22 anos, ele cuida para que todos os natais, carnavais e aniversários sejam comemorados com a presença os melhores amigos. Waldemiro ganhou o apelido carinhoso de “ditador”. E conta por quê: “Sempre que alguém pede para cantar ou tocar com a gente, é liberado. Mas um dia uma moça pegou o microfone e quis cantar axé… Aí eu tive de impedir. Começaram a me chamar de ditador”. O repertório é bem selecionado. “Não entra axé, rock, sertanejo de butique nem funk. Só música brasileira e de qualidade”, lembra.

O integrante mais jovem da banda é Nilsinho Serra, 24 anos, afilhado de Waldemiro. Quando era criança, ele começou a frequentar as rodas de música com o padrinho e se apaixonou pelas canções que ouvia ali. O menino que mal conseguia segurar um violão de tão pequeno hoje é músico profissional. “Isto aqui é um universo fantástico. Estudei música em escolas, mas aqui aprendi o que é música boa. Frequento as rodas para rever meu gosto musical. E também para aprender sempre sobre o amor pela arte, pelos amigos e a importância da sinceridade”, relatou Nilsinho.

Ensinamentos
Os mais vividos não se cansam de ensinar. Newton Ramalho, 80 anos, e “com uma ótima saúde”, como ele mesmo faz questão de se apresentar, não falta a um encontro. Dispensa a cerveja, mas não uns goles de um bom vinho tinto seco. “A gente canta, toca e faz higiene mental. É bom ter esses encontros porque Brasília afasta muito os amigos. Não tem esquina nem espaços aprazíveis para a gente se reunir. Acho que é porque aqui não tem mar, como em Natal (RN), onde eu nasci”, disse Newton. “Os médicos vão cortando tudo de bom quando chega uma certa idade. Ainda bem que tenho a turma.”

Nestas mais de duas décadas, dois companheiros deixaram a trupe. “Estão formando a Turma do Gambá no andar de cima”, resume o animado idoso. Os dois foram enterrados coincidentemente em uma terça-feira. Na quarta seguinte, nas duas ocasiões, os amigos reservaram vazias as cadeiras dos queridos que se foram, serviram a cerveja para eles como sempre e tocaram as preferidas de cada um. “A música é o alimento da alma. Cada apresentação é diferente. Há dias de sorrisos, de dança e de festa e outros de lágrimas e emoção. O show não pode parar”, finalizou o violonista Marco Aurélio Areas, 63 anos.

Hinos da Turma do Gambá

Cinthia Pereira é a única mulher da turma: "Sou a menina dos olhos de todos", costuma dizer

Hino do botequim (samba)
Na quarta-feira não quero saber de nada
Não tem mancada, é dia de botequim
Não tem família nem trabalho nem bobeira
Dou duro a semana inteira, mas na quarta estou aqui

Lembrando Orestes, Vinícius e Noel (pela décima vez)
Gente que fez o nosso povo cantar
Boemia, aqui me tens de regresso e suplicante te peço
Não deixe o samba acabar

Vou tomar umas e encontrar os meus amigos
Sonhos antigos outra vez quero sonhar
Vou cantar junto e, mesmo que eu desafine,
Só o Schneider reprime, Rangoware é meu lugar

Ai! Que saudade da Lapa
Velha ribalta de raríssimo esplendor
Juntando Chico com Paulinho e Cartola
E a lua, por esmola, lembra o meu primeiro amor

Hino do botequim (frevo)
Olha nós aqui, a Turma do Gambá
A gente bebe, mas é só pra relaxar
Ninguém passa mal, nem fica pelo chão
E quase nunca tem strike no salão

Toda quarta-feira no nosso botequim
Tem um lugar para aquele que está a fim
De um papo em voz baixa, de cantar uma canção
Matar a sede, ouvir um choro e soltar a emoção

Porque a gente bebe agora eu vou contar
Bebe porque é líquido e não dá pra mastigar
E quando a conjuntura fica má
A gente se segura é na Turma do Gambá

Serviço
Para conhecer
O Clube da Associação Médica de Brasília fica no Setor de Clubes Sul, Trecho 3. As apresentações ocorrem às quartas-feiras, a partir das 19h. A regra é clara: para assistir ao show, não se deve conversar alto e fazer barulho, jamais.



http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2010/03/22/cidades,i=181188/TURMA+DO+GAMBA+SE+REUNE+PARA+CANTAR+E+BRINDAR+A+VIDA.shtml

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