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segunda-feira, 22 de março de 2010

A vida depois da morte

21/03/2010 - 13:43 - Atualizado em 21/03/2010 - 13:43


A vida depois da morte

Novos estudos mostram que o luto é um processo mais complexo – e muitas vezes mais rápido – do que se imaginava. De onde vem a força do ser humano para superar a dor?

Marcela Buscato

Marilena Fernandes achava que estava começando a redescobrir a vida, nove anos depois da morte do marido, quando um acidente de carro lhe roubou o filho Paulo, de 20 anos. Ela decidiu abrir as cortinas de casa e enchê-la de flores. Não queria que os três outros filhos levassem uma vida amargurada. Desde então – e lá se vão cinco anos – desfila suas alegrias e tristezas todo ano em uma escola de samba. Alice Quadrado transformou o pesar causado pela morte da filha Eliana, aos 25 anos, em vontade de ajudar. Percebeu quanto outros pais que passavam por essa situação se sentiam sozinhos. Fundou a associação Casulo, onde uns apoiam os outros e encontram forças para seguir em frente. “Foi a maneira que encontrei para dar significado a algo de muito ruim”, diz. Marilena e Alice descobriram o que existe além de uma das piores dores a que os seres humanos estão sujeitos: perder um filho.

“Já enterrei amigos, irmãos, mãe. Nada se compara à perda de uma filha”, diz Ana Cristina de Freitas Rocha, de 57 anos, mãe de Tatiana. A jovem de 20 anos morreu em 2005, de uma infecção generalizada diagnosticada tarde demais. “Essa dor é hors-concours”, diz Ana Cristina, usando uma expressão francesa que significa “fora de competição”. É justamente essa avalanche de sentimentos, que atinge quem perde alguém amado, que os cientistas têm tentado revolver. A quem viveu grandes tragédias pessoais, fizeram a mesma pergunta que nos ocorre ao conhecer histórias como as descritas nesta reportagem: como é possível superar a dor que tanto tememos? Nós seríamos capazes?

Há bons motivos para acreditar que sim. “Somos mais fortes do que pensávamos”, afirma o psicólogo americano George Bonanno, pesquisador da Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos, e referência no estudo de fenômenos ligados à morte. Em seu livro The other side of sadness (O outro lado da tristeza, ainda sem tradução no Brasil), Bonanno compilou uma série de estudos recentes que obrigaram os especialistas a repensar o que se sabe sobre como reagimos à morte. Esses estudos parecem mostrar que a maior parte das pessoas consegue se refazer de uma perda rapidamente, às vezes em questão de semanas. E sugerem que não existe um roteiro de emoções a serem sentidas para que a superação aconteça. No depoimento da página 84, Ana Carolina de Oliveira, a mãe da menina Isabella Nardoni, relata como cada membro da família superou de forma diferente a perda da menina.

Até recentemente, a teoria mais difundida para explicar a reação humana à morte era a dos “cinco estágios do luto”, desenvolvida pela psiquiatra suíça Elizabeth Kübler-Ross, em 1969. Ela apregoa que, até superar uma perda, as pessoas enlutadas passam por fases sucessivas de negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Essa teoria entrou até para a cultura pop: foi tema de um episódio recente do seriado americano Grey’s anatomy e serviu como conteúdo ilustrativo para demonstrar o funcionamento do novo aparelho da Apple, o iPad. Kübler-Ross teve o mérito de chamar a atenção para um assunto até então ignorado, mas seu pioneirismo não foi seguido pela publicação de novos estudos.

Na década de 90, a geração de novatos à qual pertencia Bonanno notou as lacunas no conhecimento sobre o luto e desencadeou uma onda de estudos. “Chegamos a conclusões surpreendentes, simplesmente porque fizemos perguntas básicas que ninguém tinha feito”, diz Bonanno. Percebeu-se que os escassos estudos anteriores eram feitos com voluntários que haviam procurado ajuda de psiquiatras e psicólogos – logo, tinham mais dificuldades que a média para lidar com o luto, o que distorcia os resultados.

O próprio modelo dos cinco estágios do luto é um exemplo. Kübler-Ross tinha desenvolvido sua teoria observando o comportamento de pacientes com doenças terminais, o que não corresponde necessariamente à reação a outros tipos de morte. Mesmo as fases de negação, raiva, barganha, depressão e aceitação foram definidas a partir da interpretação subjetiva de Kübler-Ross e seus colegas das entrevistas com os pacientes. Até o fim da vida, em 2004, Kübler-Ross disse que sua pesquisa não havia sido bem entendida e que nunca dissera que essas cinco fases se aplicam a todos os casos nem que eram nitidamente separadas. Mas, ante a vontade de entender a inquietação humana diante da morte, sua teoria era irresistivelmente simplificadora.

Os novos estudos, com uma gama mais ampla de pessoas, concluíram que há outras maneiras de lidar com a morte de quem amamos. “Cerca de metade das pessoas lida muito bem com a perda e volta à vida normal em semanas”, diz Bonanno, que analisou uma série de levantamentos para chegar a essas estatísticas de referência. “Outros 25% sofrem por um período maior, que pode durar de alguns meses até um ano. Cerca de 15% desenvolvem graves dificuldades que afetam a convivência social e o desempenho no trabalho.”

A morte de 3 mil pessoas nos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, teve um papel inesperado no novo entendimento da ciência sobre a morte. O trauma redespertou o interesse da ciência pelo tema e impulsionou uma série de estudos que acompanharam a recuperação dos moradores de Nova York. Os resultados foram surpreendentes. Apenas seis meses após a tragédia, 65% das pessoas entrevistadas mostravam-se emocionalmente equilibradas. Essa taxa era alta até entre aquelas que perderam um amigo ou um parente na tragédia: 54% não tiveram a saúde emocional abalada, 35% já tinham se recuperado depois de desenvolver algum tipo de trauma e apenas 11% ainda enfrentavam dificuldades para se recuperar. As proporções, semelhantes àquelas encontradas por Bonanno e seus colegas em seus primeiros estudos, ajudaram a consolidar o nome que se deu ao outro lado da tristeza: resiliência.

Os atentados terroristas de 2001 geraram uma
série de estudos sobre a resiliência diante da morte
Os rostos que ilustram esta reportagem fazem parte dessa maioria à qual os especialistas chamam de “resilientes”. O termo, emprestado da física, traduz em sentido figurado o que ocorre com quem supera uma perda: é a propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original depois de sofrer um impacto. Isso não significa que não houve sofrimento ou que foi fácil. Em comum, os resilientes têm a decisão de continuar a viver – conscientemente, como Ana Cristina, ou de forma inconsciente, como Maria de Fátima Ferreira, que enfrentou um câncer de mama na mesma época da morte do filho Francesco, de 21 anos, em 2004. “As pessoas achavam que eu não ia aguentar. Eu achava que ia morrer junto”, diz. Mas ela venceu. Há quatro meses foi declarada curada pelos médicos.

Os cientistas acreditam que somos capazes de reações como a de Maria de Fátima – inexplicáveis até para ela – porque já nascemos dotados dessa capacidade de superação. Nossos genes e circuitos cerebrais teriam sido programados, ao longo de milhares de anos de evolução, para contornar o abalo provocado pela morte de pessoas com quem temos fortes vínculos emocionais. A depressão, descrita por Maria de Fátima e por outros milhares de pessoas que viveram uma tragédia, faria parte dessa estratégia. A tristeza causa uma sensação de torpor: o mundo parece estar em câmera lenta; perdem-se a fome, o desejo sexual e a vontade de viver. Essa prostração nos impediria de tomar decisões e atitudes que coloquem a própria sobrevivência em risco durante esse período. Hoje, essa função da tristeza pode parecer banal. Mas, quando nossos antepassados eram nômades, até 10 mil anos atrás, a sensação de torpor era uma questão de sobrevivência. Podia impedir que alguém entrasse por impulso em uma disputa por comida e apenas no decorrer dela se lembrasse de que seu parceiro não estaria por perto para lhe dar apoio. O período de depressão corresponderia ao período de atualização de nossos circuitos cerebrais a essa nova realidade.

A prostração soa como uma estratégia ruim de sobrevivência para nossos antepassados, às voltas com a luta diária pela vida. Mas, se ela for contrabalançada por oscilações entre depressão e otimismo, passa a fazer sentido. Quem já enfrentou a morte de alguém próximo sabe que o luto não é tristeza 24 horas por dia, sete dias por semana. Há dias em que mergulhamos no mais profundo pesar. Em outros, a vida parece ter voltado ao normal e há até momentos de genuína alegria. A teoria dos cinco estágios do luto, mostram os estudos recentes, é insatisfatória, definindo como lineares fases que são, na verdade, cíclicas.

Se o luto não é necessariamente tão sofrido quanto se imaginava, se a maioria consegue superar bem uma perda, por que algumas pessoas enfrentam tanta dificuldade? Os 15% estimados por Bonanno passam anos vivendo como nos primeiros e mais difíceis momentos do luto. Essas pessoas não conseguem retomar a vida. Vivem para a dor, em uma espécie de luto crônico, chamado pelos especialistas de “luto patológico” ou “luto complicado”. Além de prejudicar a qualidade de vida, ele aumenta os riscos de desenvolver desordens como depressão grave e transtornos de ansiedade. Um estudo da Universidade Yale, nos Estados Unidos, mostrou que esses enlutados crônicos correm um risco sete vezes maior de se suicidar.





A psicóloga americana Mary-Frances O’Connor, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, deu um passo importante na investigação das causas do luto complicado. Ela pediu a mulheres que haviam perdido a mãe ou a irmã por câncer de mama que fizessem um exame de ressonância magnética enquanto observavam uma fotografia do parente que haviam perdido. Áreas do cérebro associadas à sensação de dor eram ativadas tanto nas voluntárias resilientes quanto nas que tinham sintomas de luto prolongado. Mas nas mulheres que não conseguiam superar o luto também era ativada uma área do cérebro ligada ao sistema de recompensa, o responsável pela sensação de prazer, chamada “núcleo accumbens”. “Isso significa que as pessoas resilientes parecem processar a perda de uma maneira rápida e eficaz”, afirma Mary-Frances.

Os pesquisadores acreditam que os genes que regulam nossas respostas ao estresse ajudam a determinar se uma pessoa terá uma personalidade mais ou menos sensível a situações que geram ansiedade. Um desses genes, conhecido por 5HTT, está associado à fabricação da molécula que bombeia para os neurônios a serotonina – substância que transmite as informações entre as células do cérebro. Há duas versões desse gene. Uma produz mais moléculas transportadoras de serotonina, o que estaria ligado a uma personalidade mais estável e equilibrada. A outra versão aumentaria a excitabilidade da amígdala, uma área do cérebro associada ao medo e às emoções. “Mais de 50 estudos já avaliaram esse gene e 70% deles mostraram que uma das versões torna a pessoa mais sensível a situações estressantes”, afirma a psicóloga Terrie Moffitt, pesquisadora da Universidade Duke, nos Estados Unidos, e autora de alguns desses estudos.

O 5HTT, sozinho, não explicaria tudo. Há no mínimo dezenas de outras variações genéticas que contribuem para nosso limiar de ansiedade. E os fatores ambientais são determinantes. “A reação de uma pessoa à morte sempre depende do contexto”, afirma a psicóloga Cristina Moura, pesquisadora da Universidade de Brasília. Por exemplo, a distância física da pessoa morta ou a surpresa por uma morte repentina e inesperada.

O luto complicado pode vir a ser incluído pela Associação Americana de Psiquiatria na lista de doenças reconhecidas pela entidade, em uma revisão a ser publicada em 2013. O principal obstáculo é a dificuldade de distingui-lo do luto “comum”. Em ambos, há falta de energia, crises de choro, perda de apetite, tendência ao isolamento. A diferença é que nos casos patológicos esses sintomas vão se agravando. “Esse reconhecimento é importante porque as pessoas precisam entender que o luto prolongado é um problema específico e precisa de tratamento especializado”, afirma a epidemiologista Holly Prigerson, coordenadora da equipe do Dana-Faber Cancer Institute, que está estudando uma forma de definir claramente o que é o luto prolongado.

É preciso terapia para lidar com o luto? Estudos
mostram que ela pode até ser perigosa em alguns casos
Holly toca em um ponto ainda delicado para a ciência do luto: até que ponto uma pessoa enlutada precisa de ajuda psicológica para seguir adiante? A teoria dos cinco estágios do luto, que influenciou e ainda influencia especialistas, levou pessoas que estavam reagindo de maneira natural a ser vistas como problemáticas – e compelidas por parentes e amigos a buscar tratamento psicológico. O assunto é polêmico, mas alguns pesquisadores acreditam que há casos em que a terapia pode fazer mais mal que bem. Alguns estudos mostraram que pacientes que haviam lidado bem com o luto e começaram uma terapia passaram a acreditar ser insensíveis – afinal, não sofriam como as pessoas achavam que eles deveriam. Outros começaram a se questionar se realmente queriam bem a quem morreu. Todos se sentiam na obrigação de sofrer e se empenharam na tarefa. Com base nesses estudos, o psicólogo Scott Lilienfeld, da Universidade Emory, nos Estados Unidos, incluiu a terapia para casos de luto em uma lista de tratamentos potencialmente perigosos. “Se há a possibilidade de a terapia suscitar efeitos negativos, é melhor implementá-la com precaução”, escreve Lilienfeld em seu artigo na publicação científica Perspectives on Psychological Science. A metodologia das pesquisas que levaram Lilienfeld a essa conclusão é discutível. Muitas não especificam qual linha de terapia foi foco do estudo nem quais eram os parâmetros para estabelecer se o paciente melhorou ou piorou.

Como em todo tratamento psicológico, o resultado depende da disposição do paciente. “Nenhuma terapia é eficaz se a pessoa acredita que não precisa de ajuda e não coopera. Nem todo mundo precisa de ajuda”, diz a psicóloga Maria Júlia Kovács, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte da Universidade de São Paulo.

Também existem estudos em favor da terapia. O psicólogo Julio Peres é um dos poucos no Brasil a estudar seus efeitos sobre o cérebro de pessoas que passaram por situações traumáticas. Ao submeter 16 pacientes a tomografias, após oito sessões de terapia, Peres percebeu que a atividade cerebral, enquanto eles recordavam a experiência, havia aumentado no córtex pré-frontal e diminuído na amígdala. As conclusões são significativas porque o primeiro é a área do cérebro encarregada do raciocínio lógico e da categorização das experiências e a segunda está relacionada a nossas respostas emocionais. “As terapias de fala, como a cognitiva e a psicanalítica, obrigam a pessoa a organizar suas experiências”, afirma Peres. “É como puxar a ponta de um novelo de lã.” Falar da dor – e estudar como reagimos a ela – ajuda a nos tornar mais tolerantes à presença da morte a nossa volta.

O que os cientistas descobriram sobre o luto
Pesquisas recentes analisaram à luz da ciência o sofrimento causado pela morte de alguém querido. E revelaram imprecisões nas teorias sobre a dor aceitas durante décadas



http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI128114-15228,00-A+VIDA+DEPOIS+DA+MORTE.html

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