APOGEU E DECLÍNIO DAS CLASSIFICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
Edson Nery da Fonseca *
Sou muito grato aos organizadores da Conferência Brasileira de Classificação Bibliográfica, tanto pelo honroso convite para proferir esta palestra como pela igualmente honrosa prerrogativa de escolher o meu assunto. E congratulo-me com a Comissão Organizadora por haver aceito o desafio de um título tão heterodoxo.
Poderia, na verdade, parecer impertinência ou provocação, propor-se alguém a falar de apogeu e declínio das classificações bibliográficas num colóqui comemorativo do centenário de uma delas. Mas, há cem anos de distância, a Classificação Decimal de Dewey não precisa da nossa complacência e como que recusa comemoraçòes puramente louvaminheiras.
Não é este, aliás, o objetivo da Conferência Brasileira de Classificação Bibliográfica, a julgar pelo seu temário, que revela um esforço honesto de procura da verdade, de aperfeiçoamento dos processos técnicos em bibliotecas brasileiras, da melhor maneira de transmitir aos futuros bibliotecários deste país o conhecimento dos sistemas de classificação, das técnicas de indexação temática.
É curioso como as classificações filosóficas e as classificações bibliográficas, tendo embora objetivos diametralmente opostos, estão intimamente ligadas. Essa ligação demonstra que, na velha questão dos universais, tanto o realismo como o nominalismo pecavam pelo exagero, devendo-se procurar a verdade no realismo moderado, que vê as idéias não apenas como realidades nem apenas como nomes, mas distinguindo-se o modo por que as coisas existem em si mesmos e o modo por que existem as inteligências. Assim, quando exclusivamente filosóficos, os sistemas de classificação pecam pelo realismo; e quando exclusivamente pragmáticos, pelo nominalismo.
Se é verdade que uma classificação bibliográfica deve ser predominantemente prática, não pode ela violentar a lógica a pontos tão extremos como o apontado por Douglas Foskett no sistema de Melvil Dewey: o de até a 17a. edição classificar a arte e a técnica de contar histórias (storytelling) como espécie do gênero "Jardim-da-infância e Creches"(Kindergarten and nursery achools) (1, p. 373-374)
Desde a mais remota antiguidade, os autores de sistemas de claissificação bibliográfica têm procurado inspiração e modelo nas classificações filosóficas não como simples necessidades especulativas, mas a partir da classificação de textos. É o que afirma o autor usso Bonifácio M. Krédov, no seu livro sobre a classificação das ciências, publicado recentemente em espanhol. (2)
Para esse professor de história das ciências e da filosofia, ele mesmo químico e filósofo, as classificações filosóficas "eram muito necessárias porque a Cinha antiga possuía uma escrita extremamente desenvolvida e havia acumulado grandes tesouros literários, que requeriam certa sistematização."(2, v. 1, p. 49). De onde talvez possamos concluir que os chineses foram os primeiros nominalistas, no sentido fiolosófico da palavra, isto é, aqueles para os quais as idéias são simples nomes - "universalis post rem"- ou esquemas abstraídos, sem existência própria, pois somente as coisas existem: no caso, os textos a classificar. Sendo válida a conclusão, deve-se logo esclarecer que os chineses teriam sido nominalistas como Mr Jourdain fazia prosa, isto é, sem saber.
O mesmo autor russo fala de um bibliotecário da biblioteca imperialda China que, já num dos primeiros séculos depois de Cristo, estabeleceu uma classificação bibliográfica coincidente, no fundamental, com a que foi proposta, vários séculos depois, por Francis Bacon: História, Filosofia e Poesia. O esquema de Bacon é, como todos sabem, História (como expressão da memória), Poesia (como expressão da fantasia) e Filosofia (como expressão da razão). E como todos igualmente sabem, Melvil Dewey teria adotado, seguindo William Torrey Harris, uma terceira opção: Filosofia, Poesia e História.
Ao dos chineses, os gregos foram mais realistasnominalistas, pois acreditando que as idéias existem efetivamente e as coisas derivam delas, por meio da participação - "universalis ante rem"- elaboraram classificações puramente especulativas. Entretanto, a classificação introduzida por Calímaco na célebre Biblioteca de Alexandria era puramente utilitária. (3, p. 95) Houve, assim, entre os gregos uma espécie de divórcio entre filósofos e bibliotecários; ou entre Filosofia e Biblioteconomia.
Esse divórcio foi referendado por Stanley Jevons, um dos poucos autores que, abordando o problema da classificação das ciências, referiu-se expressamente ao caso prático da organização de coleções, ao qual dedicou mais de quatro páginas de sua obra The principles of science; a treatise on logic and scientific method. A conhecida afirmação de Jevons, para quem a classificação de livros por assunto seria "um absurdo lógico", tem sido sempre citada en passant, sem uma análise do seu contexto e, sobretudo, de suas motivações. Parece oportuno tentar aqui essa análise.
Nascido em Liverpool, Inglaterra, no ano de 1835, Stanley Jevons morreu com apenas 47 anos, num afogamento acidental. Mas foram poucos anos de muitas e diversificadas atividades, tanto quanto de muito sofrimento e muita luta para conquistar "um lugar ao sol". Ele foi, metaforicamente, homem de váriios instrumentos. Antes de escrever o tratado sobre l[ógica e método científico - obra tão notável quanto o Sistema de Lógica de John Stuart Mill, de quem Jevons, aliás, não gostava - já havia publicado, em 1871, The theory of political economy, livro de importância relevante na história do pensamento econômico. Tinha, além disso, conhecimentos práticos de Física, Metalurgia e Meteorologia que fazem pensar, por comparação, na grande figura de político e cientista brasileiro que foi José Bonifácio de Andrada e Silva.
O capítulo XXX de Principles os science, inteiramente dedicado à Classificação e assim intitulado, compõe-se de uma introdução e vinte subdivisões, uma das quais (a décima quinta) é dedicada ao que Jevons denomina "classificações-índices" index classifications).(4, p. 714-718)
Ele começa por estabelecer a vastidão significativa da palavra classificação, que pode incluir todos os arranjos de objetos e nomes que fazemos para poupar trabalho na sua descoberta (p. 714). "Até os ïndices alfabéticos são classificações", afirma Jevons a seguir. E depois de indicar as várias maneiras pelas quais os livros podem ser classificados, vem o trecho em que aparece a tão citada frase e que me permito traduzir:
A classificação por assuntos poderia ser um método extraordinariamente útil se fosse viável, mas a experiência mostra ser ela um absurdo lógico (a logical absurdity). Classificar as ciências é um trabalho tão difícil quanto complicadas são as relaçòes entre elas. Mas no caso de livros a complicação é exageradamente maior, porque o mesmo livro pode tratar de diferentes ciências, ou pode discutir um problema que envolve muitos campos do conhecimento." (p. 715)
Tais considerações me animaram a, no resumo desta palavra, considerar Stanley Jevons como precursos do moderno conceito de interdisciplinaridade e, por via deste, de toda a teoria geral dos sistemas. Ele foi, aliás, também pioneiro em outros campos, como o da lógica simbólica e o das máquinas de clacluar, segundo informa o professor Ernest Nagel, na sugestiva introdução que escreveu para a edição americana de Principles of science. (4, p. xlv)
Como bom argumentador, Stanley Jevons indica, em seguida, alguns exemplos de interdisciplinaridade, sem usar, é claro, esta palavra, que é bastante recente.
Um bom trabalho sobre máquina a vapor ficará antiquado, na medida em que deixe de investigar os primeiros esforços para sua descoberta: puramente científico, quando se considera os princípios de termodinâmica nela implícitos; técnico, quando se atenta para os meios mecânicos de aplicação de tais princípios: econômico, quando se julga os resultados industriais da invenção; biográfico, quando se destaca as vidas dos inventores. A história da Abadia de Westminster pode pertencer, igualmente, à história da arquitetura, à histórica da Igreja ou à história da Inglaterra. Se abandonamos a tentativa, procurando estabelecer um arranjo de acordo com a classificação natural das ciências, formando amplos grupos práticos, ficaremos continuamente perplexos diante da ocorrência de casos intermediários, diferindo as opiniões tão ad infinitum quantos sejam os detalhes. (p. 715)
Todos sabemos que as dificuldades dos casos práticos indicados por Stanley Jevons foram perfeitamente resolvidas pelos sistemas de classificação multidimensionais ou "facetados": sistemas que ele não chegou a conhecer, por haver tão prematuramente morrido em 1882.
The Principles of science foi publicado em 1874. Desde o ano anterior Melvil Dewey procurava, nos Estados Unidos, etabelecer um sistema que, anonimamente divulgado em 1876, muito contribuiu para o apogeu das classificações bibliográficas. A consagração do sistema de Melvil Dewey pela primeira Conferência Bibliográfica Internacional, em 1895, foi bastante significativa. Pouco importa que, no ano seguinte, a Royal Society de Londres tenha tentado torpedear os trabalhos dirigidos, na Bélgica, por Henri La Fontaine e Paul Otlet. Rechaçada por este, em sucessivos e impressionante série de artigos publicados no Boletim do Instituto Internacional de Bibliografia, a classificação que os ingleses tentaram impor não se internacionalizou, ficando restrita a uma só publicação: O International Catalogue of Scientific Literature. (5)
"Não há ciência sem classificação dos fatos que ela estuda; e as classificações progridem com as ciências que as elaboram": este é o processo de feedback enunciado por Eric de Grolier no verbete (pequeno, mas cheio de idéias) que escreveu para a obra coletiva organizada por Abraham Moles e Claude Zeltmann, intitulada La Communication (6, p. 96
As novas ciências, entretanto, exigem classificações também novas. Recusando "qualquer hirarquia nas ciências do homem, como as hierarquias parciais que podem discernir-se nas ciências da natureza", o sábio Jean Piaget propõe uma "classificação circular e não linear das ciências".(7, p. 13 e 15)
A ordenação circular das ciências, proposta por Piaget, opõe-se naturalmente à ordenação linear dos sistemas bibliográficos denominados por A. C,. Foskett de "pré-coordenados": Dewey, CDU, Library of Congress, etc. (8, p. 197-202) A classificação circular foi inspirada pelas cada vez maiores inter-relações entre as ciências da natureza e as ciências do homem. Não se trata - note-se bem - de simples redução destas àquelas: redução baseada num positivismo ultrapassado. Trata-se realmente de uma relação como que "de igual para igual", como esclarece Piaget. Pois as novas técnicas lógico-matemáticas das ciências humanas, embora baseadas no modelo das ciências da natureza, forneceram a estas soluções imprevistas. "Colocando a questão noutros termos"- esclarece Piaget - "se existe uma tendência que procura 'ntarualizar' as ciências do homem, há também a tendência recíproca para 'humanizar' certos processos naturais". (7, p. 109)
Entretanto, a claissificação de Piaget é puramente especulativa e, portanto, sem aplicação na ordenação de livros nas estantes, , de fichas em catálogos de referências em bibliografias. Para corrigir o nominalismo de sistemas exclusivamente pragmáticos, a classificação circular peca por um realismo exagerado, > no sentido filosófico da expressão. A solução parece estar nos sitemas que A. C. Foskett chama de pós-coordenados (8, p. 305-367), como que inspirados por um realismo moderado. Tais sistemas assinalam o declínio das classificações bibliográficas.
Quero fazer, antes de concluir, uma declaração muito importante a respeito do título e do resumo desta palestra. Eles foram enviados à Comissão Organizadora da Conferência Brasileira de Classificação Bibliográfica imediatamente depois do recebimento do convite com que fui distinguido. Esse convite me obrigou a fazer uma revisão da literatura sobre classificação, assunto em que estava desatualizado, porque a direção de uma Faculdade, a presidência de várias congregações de carreira e a participação em diversos colegiados me obrigou, por um lado, a concentrar-me bibliograficamente em outras ciências da informação e, por outro, a dispersar-me prazerosamente em outras áreas do conhecimento.
Não tenho receio - desculpai a nota pessoal - de corrigir-me quando percebo que me enganei. A leitura de uma dezena de livros e de uma vintena de artigos e contribui'xões a obras coletivas me obriga a declarar que as classificações bibliográficas não estão em declínio. Esta foi uma hipótese que a simples revisão da literatura pertinente mostrou ser falsa.
As classificações bibliográficas estão cada vez mais na ordem do dia. Michel Serres, que pe professor de história das ciências, escreveu recentemente o seguinte: "Seria talvez necessário começar por fazer uma história crítica das classificações. A própria história, no entanto, pertence a uma classe". (9, p. 161)
Até as classificações de base hierárquica tiveram suas notações adaptadas para recuperação eletrônica da informação, em campos específicos, como, por exemplo, o das ciências geológicas. (10)
Mas, se não há declinbio, existe coisa pior, que é a impostura. Considero com tal as tentativas de atualização ou de renovação feitas pelos editores de alguns sistemas, sem modificação dos arcabouços originais. Tais tentativas se assemelham à operações plásticas qeu transformam em falsos brotinhos pessoas de idade avançada.
Conta-se de um ministro do Supremo Tribunal Federal, cujos cabelos eram ostensivamente pintados de preto, que, ao descer um dia, já tr^pego, a escadaria do antigo edifício daquela corte no Rio de Janeiro, levou um terrível tombo, registrado por certo circunstante com esta observação cruel: "infelizmente, não é possível pintar as pernas".
O mesmo pode ser dito das velhas classificações, reeditadas sabe Deus à custa de que interesses comerciais: não é possível, infelizmente, modificar-lhes as contradições essenciais, comoi, no caso da Classificação decimal de Melvil Dewey e da Classificação Decimal Universal, a manutenção de Psicologia como subdivisão de Filosofia - erro histórico - e a separação - erro epistemológico - entre História, Lingüística e Ciências Sociais.
Peço, consequentemente, que esta palestra se reintitule como Esplendores e Misérias das Classificações Bibliográficas. Foi este, aliás, o '\título que primeiro me ocorrei e substituí ao dar-me conta de que esta parafraseando o título de um romance de Balzac: Esplendores e Miserias das Cortesãs.
Pensando bem, existem duas analogias entre o referido romance e as classificações bibliográficas. Balzac foi um verdadeiro classificador, no sentido sociológico da palavra: e chegou a ser cognominado "O Lineu da burguesia", por haver classificado seus romances de acrodo com um sistema de estática social (11)
Existe, ainda, outra analogia, que proponho para concluir, pedindo perdão pelo anticlimax: procurando conquistar novos compradores com precárias renovações, as velhas classificações biblioráficas se comportam como cortesãs avelhantadas em busca de joves clientes.
Referências bibliográficas
1. FOSKETT, Douglas. "The contribution of classification to a theory of lilbrarianship". In: Rawski, Conrad, ed. Toward a theory of librarianship; papers in honour of Jesse E. Shera. Metuchen, N.J., Scarecrow Press, 1973, p. 169-186.
2. KREDOV, B. M. Classification de les sciences. Trad. del ruso por Jorge Bayona. Moscu, Editorial Progress, 1974. 2 v.
3. SAYERS, W. C. Berwick An introduction to library classification. 5. ed. rev. London, Grafton, 1938, 351 p.
4. STANLEY, Jevons The Principles of science; a treatise on logic and scientific method. New York, Dover Publications, 1958. liii, 786 p.
5. OTLET, Paul "Examen du projet de la Société Royale de Londres concernant le Catalogue International des Sciences".Bulletin de l'Institut International de Bibliographie (Bruxelles) Quatrième année, p. 5-48, 1899. Ao artigo de Otlet, seguem-se, no mesmo Bulletin os de Charles ichet (p. 53-57) e H. H. Field (p. 59-73). Ver ainda: Carus, Victor, "On the international Catalogue of Scientific Literature of the Royal Society", Science 9 (233): 825-835, June, 1899.
6. GROLIER, Eric de. "Classification". In: Communication et les mass media. Paris, Gérard, 1973, p. 112-113.
7. PIAGET, Jean. A situação das ciências do homem no sistema das ciências. Trad. de Isabel Cardigos dos Reis. Amadora, Bertrand, s.d. 147 p.
8. FOSKETT, A. C. A abordagem temática da informação. Trad. de Agenor Briquet de Lemos. São Paulo, Polígocono; Brasília, Ed. da Universidade de Brasília, 1973. 437 p.
9. SERRES, Michel."As ciências". In: Le Goff, Jacques & Nora, Pierre. História: novas abordagens. Trad. de Henrique Mesquita. Rio de Janeiro, F. Alves, 1978, p. 160-179.
10. RIGBY, Malcolm. "Experiments in mechanized control of meteorological and geoastropycial literature and the UDC schedules in these fileds." Revue internationale de la documentation 231 (3): 103-106, 1964. Ver ainda: Freeman, Robert R. Research project for the evolution of the UDC as the indexing language for a mechanised reference retrieval system... New York American Institute of Physics, 1965-66. 2 v. (Report n. AIP/DRP UDC-1-2)
11. CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1959-66. v. V, p. 2122.
* Palestra proferida durante a Conferência Brasileira de Classificação Bibliográfica, Rio de Janeiro, 12-17 set. 1976.
Disponível em: http://www.conexaorio.com/biti/nery/index.htm
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